29.11.06

Só por isso, Mãe

Mesmo que a noite esteja escura,
Ou por isso,
Quero acender a minha estrela.
Mesmo que o mar esteja morto,
Ou por isso,
Quero enfunar a minha vela.
Mesmo que a vida esteja nua,
Ou por isso,
Quero vestir-lhe o meu poema.
Só porque tu existes,
Vale a pena!
Lopes Morgado, "Mulher Mãe"

Todos nós que sentimos a doçura e a dor do tutano da vida, sabemos bem das dificuldades com que a Natureza nos testa a todos os dias. Mas há sempre um momento em que dizemos que “tudo valeu a pena” – nesse instante, por mais pequeno que seja, temos a certeza que o mundo é perfeito. Podemos descobri-lo em algo infinitamente pequeno ou num snetimento invulgarmente grande, numa pessoa que esbarra contra nós e nos oferece um incompreensível abraço gratuito, num gesto de carinho altruísta, ou simplesmente nas àguas frescas de uma fonte dum dia quente de Verão. Depois, noutras alturas, talvez quase sempre, existe o sofriemento desnecessário e o tédio interminável. Não conseguimos, por mais que tentemos, entender porque é que a vida nos faz suportar fardos tão pesados, porque é que a dor cresce tão inesperada e exponencialmente – quando tudo o que queremos é tão simples: sermos infeliz. Há, no meio de toda esta luta, algo que faz de nós seres únicos e especiais, algo que permanece muitas vezes escondido mas que está sempre lá, quando viramos à esquerda ou à direita, quando escolhemos peixe em vez de carne: a liberdade de vontade. Este facto, apesar de poder ser metafisicamente discutível, não o é na maior parte das decisões, simples ou complicadas, que vamos tornando ao longo da vida. Somos nós que decidimos o curso das nossas acções quotidianas e, no seu somatório, um pouco daquilo que somos. Podemos escolher ser afáveis ou ríspidos, observar o que nos rodeia ou fechar os olhos, bocejar ou lutar, estender a mão ou torcer o braço, abrir o guarda-chuva ou apanhar com as gotas de àgua no corpo – podemos até escolher ficar estáticos, morrer de uma forma brutal. E, neste caso, ficamos livres de vez das incompreensões humanas, dos juízos temerários e das doenças que nos consomem – mas, mesmo aqui, existe uma escolha. Por mais que não queiramos este é o dom ou o fardo mais importante que a Natureza nos deu. O aborto é a contradição disto tudo, pois através dele nega-se a um ser a oportunidade de escolher. E a verdade é que esse ser é humano, igual a cada um de nós, e está em fase de rápido crescimento. Quer se queira ou não, é um ser que existe e a quem querem negar o direito de percorrer um caminho semelhante ao nosso. Somos todos medíocres, frágeis, fracos e imperfeitos, por isso não podemos julgar a preservação de uma vida como a nossa – foi este o pressuposto que fez o nosso país ser o primeiro a abolir a pena de morte. Que mudou desde então? Ao fazermos ou sermos cúmplices de um aborto, estamos a negar a um ser a hipótese de poder dar os primeiros passos, de dar um tímido primeiro beijo, de sentir uma brisa fresca na face, de escolher – simplesmente de escolher. Sei muito bem quão cruel a vida pode ser, sei da desgraça da dor e da doença, das limitações do nosso crescimento, das desigualdades e das injustiças. Mas nada nem ninguém pode impedir um semelhante de viver, nada nem ninguém pode julgar quem vive e quem morre – esta é a única escoha que atenta contra a essência da humanidade porque vai contra o instinto primordial da própria humanidade. Ao contrário do homicidio comum, o aborto impede o ser humano de exercer a liberdade de vontade por uma vez que seja. E isto é decidido por outros seres humanos – mãe, pai, legislador ou outro – com mais poder, mais força e mais autoridade. Esses seres humanos são independentes dos próprios progenitores e estão completamente à mercê (a Natureza assim o ditou) de todos os que não o querem. O homem do futuro, intelectual e sociológicamente mais avançado, irá olhar paraos nossos dias como fundamentais para defesa da sobrevivência da humanidade. Assim, esta questão está relacionada com conceitos que podem confirmar ou destruir o nossos princípios – e, como em outras ocasiões fulcrais da História, não há lugar para inércia ou tibieza.

20.11.06

Razões para escolher a vida

Nota Pastoral do Conselho Permanente Conferência Episcopal Portuguesa sobre o referendo ao aborto

1. A Assembleia da República decidiu sujeitar, mais uma vez, a referendo popular o alargamento das condições legais para a interrupção voluntária da gravidez, acto vulgarmente designado por aborto voluntário. Esta proposta já foi rejeitada em referendo anterior, embora a percentagem de opiniões expressas não tivesse sido suficiente para tornar a escolha do eleitorado constitucionalmente irreversível, o que foi aproveitado pelos defensores do alargamento legal do aborto voluntário.
Nós, Bispos Católicos, sentimos perplexidade acerca desta situação. Antes de mais porque acreditamos, como o fez a Igreja desde os primeiros séculos, que a vida humana, com toda a sua dignidade, existe desde o primeiro momento da concepção. Porque consideramos a vida humana um valor absoluto, a defender e a promover em todas as circunstâncias, achamos que ela não é referendável e que nenhuma lei permissiva respeita os valores éticos fundamentais acerca da Vida, o que se aplica também à Lei já aprovada. Uma hipotética vitória do “não” no próximo referendo não significa a nossa concordância com a Lei vigente.
2. Para os fiéis católicos o aborto provocado é um pecado grave porque é uma violação do 5º Mandamento da Lei de Deus, “não matarás”, e é-o mesmo quando legalmente permitido.
Mas este mandamento limita-se a exprimir um valor da lei natural, fundamento de uma ética universal. O aborto não é, pois, uma questão exclusivamente da moral religiosa; ele agride valores universais de respeito pela vida. Para os crentes acresce o facto de, na Sua Lei, Deus ter confirmado que esse valor universal é Sua vontade.
Não podemos, pois, deixar de dizer aos fiéis católicos que devem votar “não” e ajudar a esclarecer outras pessoas sobre a dignidade da vida humana, desde o seu primeiro momento. O período de debate e esclarecimento que antecede o referendo não é uma qualquer campanha política, mas sim um período de esclarecimento das consciências. A escolha no dia do referendo é uma opção de consciência, que não deve ser influenciada por políticas e correntes de opinião. Nós, os Bispos, não entramos em campanhas de tipo político, mas não podemos deixar de contribuir para o esclarecimento das consciências. Pensamos particularmente nos jovens, muitos dos quais votam pela primeira vez e para quem a vida é uma paixão e tem de ser uma descoberta.
Assim enunciamos, de modo simples, as razões para votar “não” e escolher a Vida:
1ª. O ser humano está todo presente desde o início da vida, quando ela é apenas embrião. E esta é hoje uma certeza confirmada pela Ciência: todas as características e potencialidades do ser humano estão presentes no embrião. A vida é, a partir desse momento, um processo de desenvolvimento e realização progressiva, que só acabará na morte natural. O aborto provocado, sejam quais forem as razões que levam a ele, é sempre uma violência injusta contra um ser humano, que nenhuma razão justifica eticamente.
2ª. A legalização não é o caminho adequado para resolver o drama do “aborto clandestino”, que acrescenta aos traumas espirituais no coração da mulher-mãe que interrompe a sua gravidez, os riscos de saúde inerentes à precariedade das situações em que consuma esse acto. Não somos insensíveis a esse drama; na confidencialidade do nosso ministério conhecemos-lhe dimensões que mais ninguém conhece. A luta contra este drama social deve empenhar todos e passa por um planeamento equilibrado da fecundidade, por um apoio decisivo às mulheres para quem a maternidade é difícil, pela dissuasão de todos os que intervêm lateralmente no processo, frequentemente com meros fins lucrativos.
3ª. Não se trata de uma mera “despenalização”, mas sim de uma “liberalização legalizada”, pois cria-se um direito cívico, de recurso às instituições públicas de saúde, preparadas para defender a vida e pagas com dinheiro de todos os cidadãos.
“Penalizar” ou “despenalizar” o aborto clandestino, é uma questão de Direito Penal. Nunca fizemos disso uma prioridade na nossa defesa da vida, porque pensamos que as mulheres que passam por essa provação precisam mais de um tratamento social do que penal. Elas precisam de ser ajudadas e não condenadas; foi a atitude de Jesus perante a mulher surpreendida em adultério: “alguém te condenou?... Eu também não te condeno. Vai e doravante não tornes a pecar”.
Mas nem todas as mulheres que abortam estão nas mesmas circunstâncias e há outros intervenientes no aborto que merecem ser julgados. É que tirar a vida a um ser humano é, em si mesmo, criminoso.
4ª. O aborto não é um direito da mulher. Ninguém tem direito de decidir se um ser humano vive ou não vive, mesmo que seja a mãe que o acolheu no seu ventre. A mulher tem o direito de decidir se concebe ou não. Mas desde que uma vida foi gerada no seu seio, é outro ser humano, em relação ao qual tem particular obrigação de o proteger e defender.
5ª. O aborto não é uma questão política, mas de direitos fundamentais. O respeito pela vida é o principal fundamento da ética, e está profundamente impresso na nossa cultura. É função das leis promoverem a prática desse respeito pela vida. A lei sobre a qual os portugueses vão ser consultados em referendo, a ser aprovada, significa a degenerescência da própria lei. Seria mais um caso em que aquilo que é legal não é moral.
3. Pedimos a todos os fiéis católicos e a quantos partilham connosco esta visão da vida, que se empenhem neste esclarecimento das consciências. Façam-no com serenidade, com respeito e com um grande amor à vida. E encorajamos as pessoas e instituições que já se dedicam generosamente às mães em dificuldade e às próprias crianças que conseguiram nascer.

Lisboa, 19 de Outubro de 2006

18.11.06

Reflexão primordial

Antes de reflectirmos sobre este assunto, proponho que paremos um pouco para pensar na nossa postura futura, enquanto estivermos a falar, discutir ou argumentar, com outros que não partilham das nossas convicções. A maneira como formos adornados, emocional e psicológicamente, para a batalha, será tão importante como a força das nossas palavras.

Não julgar
Este ponto é essencial para nos distinguir dos demais. Se não quisermos que os outros façam juízos mortais sobre um ser que ainda não nasceu, nunca poderemos nós também julgar quem praticou, pratica ou praticará o aborto. “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”.

Não descriminar religiões
Eu sou católico apostólico romano e suponho que muitos dos que me acompanham também. Mas não podemos transformar esta luta numa discussão teológica, até porque ultrapassa a noção religiosa. Os budistas, os muçulmanos, os judeus, ou outro cristão, são dogmaticamente obrigados a defender a vida – este é mais um elo comum que nos aproxima. Dêmos as mãos e controlemos juntos as maravilhas do mundo.

Ter paciência e complacência
Nas discussões com os que têm uma opinião diferente da nossa, temos de demonstrar a virtude e consistência daquilo que acreditamos. Só amando o próximo, inclusivamente aquela que propõe uma atitude radicalmente diferente, é que poderemos provar que as nossas intenções são sinceras e reais. Assim, se estivermos demasiado enervados ou ansiosos, deixemos os argumentos para mais tarde.

Ter consciência da importância da matéria
A razão deste ponto está no texto seguinte, de nome “Direito de Escolha”.

Diogo Dantas